DIREITO AGORA

Precisamos falar sobre as defesas criminais dativas!

03/10/2024

LUIZ ANTONIO CÂMARA

Doutor em Direito Penal, mestre em Direito Processual Penal (UFPR). Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas (APLJ). Ex-professor da PUCPR e do UNICURITIBA. Advogado.

 

Os direitos dos menos favorecidos economicamente compõem a pauta contínua de quem exige defesas criminais efetivas e, por consequência, um devido processo legal, por natureza justo e igualitário, a todos extensivo.

No universo do processo justo se inserem as defesas de ofício (pela defensoria pública, predominante na América Latina e existente nos EUA e pelos dativos, preponderantes na Europa e também presentes no país norte-americano).

No Brasil, a defesa dos desfavorecidos, a partir da Constituição de 1988, passou a ser incumbência da defensoria pública, tardia em alguns Estados e, instalada, insuficiente em outros, o que importou na manutenção dos dativos.

A existência e persistência do quando de dativos impõe reflexões relacionadas aos três maiores problemas enfrentados pela categoria: deficiência ou ausência de estrutura, baixa remuneração e ausência de preparo.

Partindo do pressuposto de que, no Paraná, após trabalho árduo da OAB, houve grandes conquistas para os dativos (a remuneração é razoável e certa e a nomeação se dá por listas fornecidas pela entidade), sublinho que a ausência de estrutura e a falta de preparo dos causídicos constituem barreiras quase instransponíveis para defesas efetivas. É sob esse prisma que aqui reflito.

Em quase quatro décadas atuando na advocacia criminal, me vêm à mente imagens recorrentes ligadas à qualidade (ou ausência dela) de defesas técnicas de acusados que não podem contratar advogados. Recordo algumas:

1989: um casal condenado por estelionato procurou meu escritório e o contratou, já havendo decisão definitiva. O exame das alegações finais, apresentadas por dativo, chamou a atenção. Delas constava tão somente o que segue: “MM. Juiz: há nulidades no processo. Requer-se a absolvição dos réus”. Um habeas corpus no Tribunal afastou o drama: os réus estavam indefesos.

Fui imprudente e, na petição do h.c., afirmei que defesas como aquela eram rotineiras entre os dativos de Curitiba, o que me valeu a ameaça, por eles, de um processo ético na OAB. E a perene antipatia de tais profissionais.

2001: ministrando aulas de Processo Penal na Escola da Magistratura Federal, debati com a assistência o tema devido processo legal e seus consectários, tratando da efetividade de defesa e da necessidade de real atuação do defensor técnico. Após, uma aluna, funcionária de um dos juízos criminais de Curitiba, me entregou cópia de uma peça de alegações finais. Nela o defensor dativo fez constar o que segue sobre o acusado: “Deve ser condenado não pelo crime, mas pela ignorância, retardado, mesquinho, indivíduo tal que Tertuliano, frívolo e peralta, paspalhão desde fedelho: tipo do sujeito que, se morresse, nem faria falta...”. Claro, desprezado vigorosamente pelo patrono, o réu foi condenado.

2020: realizando pesquisa em juízo do interior do Estado do Paraná, para capítulo de livro publicado em homenagem ao Min. Edson Fachin (em coautoria com Victor Hugo Câmara em que debatemos o direito à defesa efetiva[1]), me defrontei com situação em que, tendo o MP apresentando alegações finais escritas vigorosas, ainda as complementou oralmente. A defensora dativa, em contraposição, apresentou as suas, oralmente, em 24 segundos e requereu que o juiz “reconhecesse a imputabilidade do réu”. Evidentemente, o juiz a atendeu.

2024: em janeiro, meu escritório passou a representar pro bono um idoso que, à época dos fatos tinha 80 anos e evidentes sinais de doença psíquica expressiva de inimputabilidade. Antes, nomeado dativo, ele apresentou resposta à acusação em uma página e meia. E afirmou que “ante a carência de provas, imutável e incontroversa (sic) a defesa apresentará defesa (sic) completa finda a instrução, na fase de alegações finais”. Disse, mais, que ficaria “provado que os fatos narrados na exordial” não correspondiam à verdade. Asseverou que provaria a inocência do réu na instrução, por “todo o meio (sic) de prova existente em Direito”, valendo-se, sobretudo, do depoimento das testemunhas, pugnando, “após a audiência instrutória” pela “realização das diligências que se fizerem necessárias”.

A ignorância do defensor (autointitulado “Dr.”) em relação a referenciais mínimos do processo penal é escandalosa: afirmou a pretensão de provar a inocência do réu na instrução, com testemunhas. Contudo, essa parecia uma missão impossível: quem as arrolou foi a acusação! Demonstrou, mais, total alheamento à presunção de inocência e ao in dubio pro reo, além de dificuldades em eximir-se do ônus da prova que é da acusação. A incumbência de apresentar prova “imutável e incontroversa” é do MP! E, nitidamente, nada demonstra que tivesse qualquer noção sobre a incidência de um standard probatório exigente e impositivo de absolvição quando, produzidas e valoradas as provas, persiste dúvida razoável sobre a culpabilidade do réu. Não era também adequado provar nas diligências finais: o momento oportuno para requerer prova é o da resposta à acusação! A ultrapassagem de tal momento importa em preclusão.

É também evidente o desconhecimento do direito material pelo causídico: para traçar um comparativo, expusemos o caso à Inteligência Artificial (IA). Na peça de autoria dela, se requer perícia e o reconhecimento de completa ou parcial incapacidade de autodeterminação. E, em caso de condenação, a incidência de atenuante (réu idoso). Conclusão: o réu estaria melhor com a IA!

Veja-se que, distando 35 anos o primeiro do último dos casos, eles têm ao menos dois pontos em comum: a) das defesas técnicas se incumbiram profissionais dativos e b) nos quatro casos, os réus quedaram indefesos.

Aí se escancara grave problema que marca a maioria das defesas dativas: a falta de preparo, em razão de que as escolas de Direito (mesmo as boas) não formam advogados. Função que, no momento atual, deve ser da OAB.

Não ignoro que a má qualidade assola as defesas criminais de forma generalizada, pois, quando contratados, os low cost são os preferidos. Mas, é inegável que maior atenção deve ser conferida aos defensores dativos, remunerados com dinheiro público. E, se nos casos de defensores indicados pelos réus, estes, em última instância, devem arcar com as consequências de suas más escolhas, como decide reiteradamente a Corte Europeia de Direitos Humanos, outra é a situação em que o defensor é imposto ao acusado. Especialmente a partir de listas elaboradas pela OAB.

É correto que, em nome da independência funcional, a OAB monte o painel e o envie aos juízes para que, em regime rotativo, nomeiem os dativos. É louvável que, com grande e inegável esforço, a entidade garanta aos dativos que recebam pelos serviços prestados e que os honorários sejam razoáveis. E é também merecedora de elogios a postura de algumas seccionais da OAB ministrando cursos curtos para dativos.

Mas é necessário mais! É essencial, também, que se exija do candidato à defensoria dativa que demonstre conhecimento mínimo de Direito Penal (por exemplo, a maioria ignora que crime é conduta típica, ilícita e culpável) e de Direito Processual Penal (grande parte desconhece a extensão da justa causa como condição para a ação penal). Além, claro, de não conhecer direitos fundamentais mínimos (por exemplo, aquele ao devido processo legal).

E, para tal fim, se mostra essencial que a OAB oferte formação específica em cursos de média duração (de ao menos 360 horas, equivalentes a especializações) e realize provas ao final, habilitando os aprovados para os quadros de dativos. Como, a propósito, ocorre no Barreau de Paris.

Os cursos devem se voltar, inicialmente, à formação básica dos profissionais, preparando-os para os mais simples eventos. Destes destaco posturas que devem ser adotadas frente ao abuso de agentes estatais, como nas seguintes situações exemplificativas: ser constrangido a ficar nu(a) em revista anterior a visita ao sistema prisional; ser impedido pela polícia judiciária de acompanhar o cliente em interrogatório ou de com ele se entrevistar; ser ignorado quando alerta sobre o direito do investigado de silenciar; como refutar manifestações caprichosas da acusação ou do julgador e como se postar diante do depoimento provocativo de funcionários estatais (v.g., o Delegado da polícia federal que atuou de forma parcial na colheita da prova do inquérito).

Realço que a tais finalidades mais ambiciosas não servem cursos curtos ou continuados. Exige-se aprimoramento detido, também na dogmática jurídico-penal, com consequente demonstração de capacitação mínima para a defesa do direito à liberdade. É isso ou fechamos os olhos para uma realidade sombria.



[1] CÂMARA, Luiz A., CÂMARA, Víctor Hugo C. Devido Processo Legal, Direito de Defesa, Formação e Aperfeiçoamento de Advogados Criminais Dativos, in Direito, Educação & Cidadania – Estudos em homenagem ao Ministro Edson Fachin, - Coord. José Laurindo de Souza Netto, Gilberto Giacoia e Eduardo Cambi. Curitiba: Clássica, 2021, pp. 1021/1043. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1mkQbXe3cJfELrYN7ClSPzqXZk-YlhZoi/view

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