06/03/2023
JOÃO VITOR SANTOS DE ALCÂNTARA
Advogado Criminal
Especialista em Criminologia e Direito Penal (PUCRS)
Em 24 de janeiro de 2020 entrou em vigor a chamada Lei Anticrime (Lei 13.964/19). E, com ela, foi inserido o artigo 28-A no Código de Processo Penal, criando o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).
Há dois anos, inclusive, foi publicada nesta Coluna do Direito Agora, notas sobre o novo instituto que pode ser lida através do link: https://shre.ink/direitoagora-anpp.
Assim, transcorridos mais de três anos desde a inserção do ANPP no Código de Processo Penal, existem discussões sobre a aplicabilidade e alcance do instituto que, até o momento, se encontram distantes de posições (e soluções) unânimes na doutrina e nas decisões dos Tribunais brasileiros.
Um dos temas de maior embate, - ao lado da discussão sobre a (ir) retroatividade do ANPP -, é sobre a possibilidade (e compatibilidade com o sistema acusatório) de intervenção do juiz na construção das cláusulas e condições do Acordo de Não Persecução Penal.
Em alguns pontos do tema da intervenção judicial já existem entendimentos minimamente pacificados na jurisprudência, como, por exemplo, o da impossibilidade de o juiz obrigar o Ministério Público a oferecer proposta de ANPP quando recusado pelo órgão acusatório.
No entanto, em outros tópicos, como o da pactuação das cláusulas/condições do Acordo de Não Persecução Penal, há uma zona turva em relação a de que forma os magistrados podem (e se podem) interferir e determinar ajustes nas condições da proposta de ANPP ofertada pelo MP ao investigado/acusado.
Não há dissenso sobre a possibilidade de o juiz recusar a homologação do acordo quando houver ilegalidade ou abusividade nas cláusulas ofertadas pelo MP (cf. disposição expressa dos parágrafos 4º e 5º do art. 28-A do CPP).
Em tal hipótese, não há dúvidas de que a intervenção judicial, com o intuito de afastar a ilegalidade ou abusividade, será legítima, cumprindo, na essência, a função do Poder Judiciário de proteção às garantias fundamentais estabelecidas na Constituição Federal.
A discussão se intensifica em relação à parte inicial do parágrafo 5º, do art. 28-A do Código de Processo Penal, que prevê que o magistrado poderá não homologar o ANPP quando considerar as condições inadequadas ou insuficientes.
Com isso, surgem alguns questionamentos:
a. Poderá o magistrado, em substituição ao membro do Ministério Público, agravar as cláusulas do acordo quando considerá-las insuficientes?
b. O membro do Ministério Público estará obrigado a acatar a decisão de não homologação promovendo, assim, a alteração ou agravamento das condições do ANPP para que seja satisfeita a vontade do Juízo?
c. Caso o magistrado não homologar o ANPP e o MP se recuse a alterar as cláusulas do acordo, como será dirimido o impasse em relação à efetivação do ANPP?
A depender dos entendimentos firmados para sanar questões como as suscitadas acima, há possibilidade de intervenção exagerada do juiz na esfera de atuação do MP. E, mesmo das partes, tendo investigado e órgão acusatório finalizado os termos do acordo.
Parte da doutrina defende que o controle judicial deve se ater às questões de voluntariedade, legalidade e abusividade das cláusulas. Há posição diversa, no entanto, que defende que, ao magistrado, é facultado realizar um controle do conteúdo das condições ofertadas na proposta de ANPP, analisando, assim, a adequação e suficiência das cláusulas impostas ao investigado/acusado.
O enfretamento do tema pelos Tribunais, com a resolução direta de questões como as levantadas anteriormente, tem se mostrado incipiente.
Há recortes de decisões examinando o assunto de forma oblíqua.
Exemplificativamente: o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tem decido de forma oscilante. Existem decisões que afirmam que ao Poder Judiciário cabe, tão somente, um controle de voluntariedade e legalidade do ANPP [1]. Em outras decisões, de mesma turma e mesmo relator, se atesta que o juiz poderá, além do controle de voluntariedade e legalidade, determinar ao MP que reformule as cláusulas do acordo no momento da homologação [2].
É possível encontrar decisões de outros Tribunais (como do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por exemplo [3]), afirmando que, ao Poder Judiciário cabe, tão somente, o controle sobre a abusividade das cláusulas, mas, sem aprofundamento. A determinação ao MP, pelo Juízo, de reformulação de cláusulas por inadequação ou insuficiência, a depender do caso concreto, configurará intervenção indevida na esfera de atuação do órgão acusatório.
A título de curiosidade, destaque-se que o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina já se posicionou no sentido de que pequenas alterações no ANPP (como, por exemplo, a alteração da Entidade destinatária dos valores contemplados no ANPP [4]), pelo Juízo, de ofício, não caracteriza intervenção indevida no ANPP. E nem parece haver, pois o ponto é de pouca relevância.
Frise-se, que, nas instâncias superiores o cenário jurisprudencial não traz maior clareza sobre o tema. Há, sem dúvidas, uma carência de posições firmes e diretas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre a (im)possibilidade de os magistrados recusarem a homologação de acordo em que ambas as partes, investigado/MP, consentiram com as condições ajustadas.
Sublinhe-se, por fim, que, em pontos marcados por maior relevância, parece descabida eventual postura judicial de recusa à homologação do ANPP. Por exemplo, em caso de crime ambiental, quando, após a celebração do acordo entre MP e imputado, o juiz penal exigir o ressarcimento pelo dano já discutido em ação civil pública. Ou quando a recusa se der com base na insatisfação do juiz com o valor do ressarcimento acordado na ação extrapenal.
[1] TRF4. Correição Parcial nº 5001633-06.2023.4.04.0000. 7ª T. Rel. Des. Fed. Luiz Canalli. j. em 14.02.2023.
[2] TRF4. Ag. Rg. em HC nº 5028643-93.2021.4.04.0000. 7ª T. Rel. Des. Fed. Luiz Canalli. j. em 10.08.2021.
[3] TJMG. Correição Parcial nº 2073589-22.2021.8.13.0000. Rel. Des. Octavio Augusto De Nigris Boccalini. j. em 09.03.2022. DJe de 15.03.2022.
[4] TJSC. Correição Parcial nº 5028079-26.2021.8.24.0000. 1ª C.C. Rel. Des. Carlos Alberto Civinski. j. em 15.07.2021.