16/11/2021
JOÃO VITOR SANTOS DE ALCÂNTARA
Advogado Criminal
Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia (PUCRS)
Em agosto de 2021 a Netflix lançou a série documental “João de Deus: Cura e Crime”, retratando o caso do médium brasileiro “João de Deus”, responsável pela realização de supostos “milagres” e “cirurgias espirituais”.
O documentário apresenta detalhes da ascensão nacional do médium que, entre visitas de artistas globais, ex-presidentes do Brasil, ministros do Supremo Tribunal Federal e ganhadores de copa do mundo, conquistou prestígio internacional, recebendo, entre tantas outras, visitas como as de Oprah Winfrey, Bill Clinton, Hugo Chávez, Naomi Campbell e Paul Simon.
Contudo, a sinopse do trabalho apresenta o tom do projeto. De acordo com a síntese, apesar do reconhecimento (astronômico) internacional, o “personagem principal” se tornou protagonista do maior escândalo de assédio sexual do Brasil.
Mais de 300 mulheres relataram abusos sexuais praticados pelo “milagreiro”. Atualmente, o médium enfrenta acusações de crimes sexuais, homicídios, ameaças, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, entre dezenas de crimes, alguns em fase de investigação, outros com processos em trâmite e alguns com condenações, que já ultrapassam 64 anos de prisão.
Apesar da desumanidade e perversidade que envolvem todos os casos, especialmente os descritos na série documental, há uma história específica que me chamou bastante atenção: é o caso da Dalva Teixeira de Sousa, filha de João Teixeira de Faria (“João de Deus”), descrita por alguns jornais televisivos como “a principal testemunha do caso ‘João de Deus’”.
Dalva relatou que conheceu o pai aos 9 anos, quando ele a buscou para morar com ele sob a promessa de oferecer moradia e estudos.
Contudo, aos 10 anos de idade, os abusos sexuais, violências psicológicas, cenas de espancamentos e ameaças de morte iniciaram. Narra que após sofrer abortos em decorrência das violências físicas sofridas, aos 14 anos teve o seu primeiro filho (de três, no total), se casou e começou a viver em locais diferentes, no intuito de se livrar do pai e das violências suportadas até ali.
No entanto, a situação de miséria, a absoluta ausência de condições mínimas (e dignas) de moradia, trabalho e alimentação, experimentadas por ela e seus três filhos (conforme relatado no documentário), foram circunstâncias primordiais que a impediram de se emancipar do indivíduo que a abusara e violentara desde a infância.
Após viver na “rua da amargura” (nas palavras dela), ela ficou anos sem poder conviver com os filhos. A solução, à época, oferecida a ela para voltar ao convívio dos filhos foi a de “voltar ser dele” [João de Deus]. Ao relatar esse momento, a dor e o desamparo dela são visíveis.
Em todas as oportunidades em que Dalva teve forças e coragem para denunciar e a tentar se livrar das violências sofridas, não lhe foi oferecido amparo para que obtivesse êxito. Faltou o básico, o mínimo: trabalho, moradia, alimentação, escola e apoio psicológico, para ela e para os filhos.
Diante desse caso fiquei refletindo sobre alguns comentários feito pela professora da PUC do Rio Grande do Sul, Fernanda Martins: em uma aula sobre “Feminismo e Justiça Criminal”, ela abordou como as pautas de emancipação das mulheres no Brasil se vincularam à semântica e aos objetivos traçados por organismos internacionais que - nem sempre - atendem a todas e às reais necessidades sociais e geográficas do nosso país.
A ótica internacional de “combate à violência” (como as violências narradas acima) deu protagonismo ao Direito Penal na luta pela igualdade de gênero; contra a violência de gênero e na consecução de direitos.
Não há dúvidas do papel relevante e da essencialidade do Direito Penal em tais agendas. A punição de criminosos (violentadores e abusadores) se comprovada a culpa, é necessária e civilizatória.
Contudo, as perguntas importantes para reflexão são: onde estava o Direito Penal há mais de 30 anos quando centenas de mulheres eram abusadas? O que o Direito Penal fez pela vítima quando, em razão da miséria, ela teve que voltar para o convívio com o abusador-violentador? O que o Direito Penal fará, com a vítima e pela vítima, depois de descobertas as circunstâncias horrendas sofridas por ela?
Ao último questionamento há uma resposta palpável: a vítima importará ao Direito Penal somente enquanto ela (e o seu depoimento) interessarem ao desenvolvimento do processo. E antes? Ou melhor: e depois?
Analisando a situação friamente, a vítima é chamada pelo Direito Penal apenas para ser revitimizada, para sentar na frente de vários indivíduos e relatar os abusos sofridos por décadas. Só isso.
É, então, impositivo fazer uma reflexão: soluções ao problema da violência física, sexual e psicológica, sobretudo contra mulheres, não podem ser enxergadas de forma isolada.
A “solução” dada ao criminoso, não exclui a possibilidade de se discutir estratégias para amparo da vítima. Construir estratégias de prevenção não impossibilita a adesão de respostas para depois que o crime já tiver sido cometido. O mundo e a sociedade não são binários.
Evidentemente, existem diversas iniciativas (grupos e organizações) que se ocupam de oferecer suporte às vítimas. O próprio documentário expõe isso.
Entretanto, fica visível como o apoio psicológico e financeiro e a visibilidade do problema na cidade de São Paulo - SP (cidade e Estado mais ricos do país) não são os mesmos oferecidos na cidade de Abadiânia.
A universalização do Direito Penal é uma preocupação popular evidente (sempre foi, na verdade). No entanto, tal situação não descarta a necessidade de universalizar os arts. 5º e 6º da Constituição Federal.
Mostra-se essencial a adoção de medidas e soluções integrativas e não excludentes. E isso em razão de que, apesar de o Direito Penal ser um instrumento indispensável, sozinho, não é capaz (nem suficiente) para concretizar condições mínimas de cidadania.