DIREITO AGORA

A Nova Lei de Abuso de Autoridade, o paradoxo do aumento da violência policial e o uso de câmeras pelos agentes estatais.

29/10/2021

GABRIEL RODRIGUES DE CARVALHO

Advogado Criminal. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA).

 

Em 27 de setembro de 2019, foi promulgada a Lei nº 13.869/2019 – que entrou em vigor após vacatio legis prevista em seu art. 45 – prevendo “crimes de abuso de autoridade”.

 

A entrada em vigor da lei coincidiu com a divulgação do aumento de denúncias de abuso de autoridade praticados por policiais militares do Estado de São Paulo, por exemplo (um aumento de 74% entre os anos de 2017 e 2019)[1].

 

Já no ano seguinte, tornou-se possível questionar a efetividade da inovação legislativa em combater abusos de autoridade por parte das Polícias Militares, que rotineiramente ocupam o noticiário nacional[2]. No ano de 2020, inclusive, registrou-se aumento da letalidade policial, causa da “morte de 6.416 civis, o equivalente 12,8% do total de mortes violentas registradas no País”[3].

 

Uma possível resposta talvez seja a ausência, na mencionada Lei, de tipos penais específicos contra abordagens policiais abusivas. No texto originário da legislação (Projeto de Lei nº 7596/2017), houve uma tentativa que se aproxima dessa especificação e que constava do artigo 11, cuja redação era a seguinte:

 

"Art. 11. Executar a captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, ou de condenado ou internado fugitivo:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa."

 

O referido dispositivo, claramente mal redigido, mereceria diversas críticas caso entrasse em vigor, tendo sido vetado pela Presidência da República.

 

Ocorre que as razões do veto, de igual forma, merecem críticas:

 

"A propositura legislativa, ao dispor sobre a criminalização de execução de captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito gera insegurança jurídica, notadamente aos agentes da segurança pública, tendo em vista que há situações que a flagrância pode se alongar no tempo e depende de análise do caso concreto. Ademais, a propositura viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada."

 

O raso veto evidentemente ignora que também abordagens policiais abusivas geram “insegurança jurídica”, sendo atualmente um evidente problema por parte das polícias militares do país, além de recorrer ao princípio da proporcionalidade de forma extremamente genérica.

 

Não se poderia esperar algo diferente, uma vez que o atual Governo Federal, em seu primeiro ano, “excluiu do relatório anual dos direitos humanos os indicadores da violência policial praticada no Brasil em 2019”[4], não se mostrando, pois, inclinado à solução do problema.

 

Outras medidas, porém, parecem se mostrar efetivas em restringir a violência policial em abordagens policiais, e o faz sem a necessidade da ultima ratio do sistema, consistente na violenta intervenção penal por meio da criminalização de condutas.

 

Entre as principais medidas que devem ser adotadas (e sem que se amplie a indesejada punição de agentes) se encontra em posição preponderante o uso de câmeras pelos policiais.

 

Conforme estudos realizados pelas universidades de Warwick, Queen Mary e da London School of Economics, do Reino Unido, e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que, segundo a BBC[5], assim concluiu:

 

“O uso de câmeras de filmagens nas fardas policiais resultou em uma queda de até 61,2% no uso de força pelos agentes de segurança, incluindo uso de força física, armas letais e não letais, algemas e realização de prisões em ocorrências com a presença de civis.”

 

Tal estudo condiz, ainda, com decisão recente da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na qual se determina que “agentes policiais, caso precisem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento”[6].

 

O voto resultando em tal decisão salientou a “ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio alheio”[7], o que acompanha a ausência de previsão legal, na Lei de abuso de autoridade, contra condutas abusivas.

 

Quando a técnica legislativa, em especial na área penal, é omissa – e, diga-se, em se tratando de tipificação de crimes, por vezes é até melhor que o seja -, somando-se a isso a falta de políticas de segurança pública, nos âmbitos estaduais e nacional, medidas simples, inteligentes e modernas surgem como esperança para o combate ao abuso policial.

 

Sabe-se que há grande resistência à implantação de tais ações, contrariedade que é mera expressão de uma política estatal autoritária escudada na expressão perversa “bandido bom é bandido morto”.

 

Em contrapartida, porém, a implementação de tal medida em 18 batalhões da Polícia Militar do Estado de São Paulo reduziu o número de mortes em confrontos de dezenove (no mês de maio de 2021), para zero (no mês de junho do mesmo ano), um mês após a instalação de câmeras, nos uniformes, que “não podem ser desligadas pelos policiais e são controladas à distância, com transmissão em tempo real”[8].

 

Não há dúvidas de que universalização do uso de câmeras serve como escudo protetor não só de investigados e suspeitos, muitas vezes inocentes, como, também, dos próprios policiais. Agindo em estrita conformidade com a lei poderão, sempre, se valer dos registros em vídeo para evidenciar sua atuação adequada.

 

E, ao fim, ganharão todos, com a consolidação de uma política efetiva de direitos humanos.



[1] Denúncias de abuso de autoridade cometidos por PMs de SP crescem 74% em dois anos. G1. Giba Bergamim. 22 de jan. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/22/denuncias-de-abuso-de-autoridade-cometidos-por-pms-de-sp-crescem-74percent-em-dois-anos.ghtml>. Acesso em 27 out. 2021.

[2] Casos de abusos de policiais em abordagem são rotina no Brasil. 18 de jul. 2020. Folha de São Paulo. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/casos-de-abusos-de-policiais-em-abordagem-sao-rotina-no-brasil.shtml>. Acesso em 27 out. 2021.

[3] A letalidade policial volta a crescer e representa 12,8% das mortes violentas registradas em 2020. Carta Capital. René Ruschel. 10 de ago. 2021. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-letalidade-policial-volta-a-crescer-e-representa-128-das-mortes-violentas-registradas-em-2020/>. Acesso em 27 out. 2021.

[4] Governo exclui violência policial do relatório sobre violações de direitos humanos de 2019. G1. 12 de jun. 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/06/12/governo-exclui-violencia-policial-do-relatorio-sobre-violacoes-de-direitos-humanos-de-2019.ghtml >. Acesso em 27 out. 2021.

[5] Câmera em farda policial reduz uso de força e prisões, diz estudo. BBC News Brasil. 01 de out. 2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58756616 >. Acesso em 27 out. 2021.

[6] Policiais devem gravar autorização de morador para entrada na residência, decide Sexta Turma. Superior Tribunal de Justiça. 02 de mar. 2021. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/02032021-Policiais-devem-gravar-autorizacao-de-morador-para-entrada-na-residencia--decide-Sexta-Turma.aspx >. Acesso em 27 out. 2021.

[7] STJ. HC nº 598.051/SP. Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma. J. em 02/03/2021, DJe de 15/03/2021.

[8] PMs de 18 batalhões que passaram a usar câmeras em uniformes registram letalidade zero em junho no estado de SP. G1. Cesar Galvão. 12 de jul. 2021. Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/07/12/pms-de-18-batalhoes-que-passaram-a-usar-cameras-em-uniformes-registram-letalidade-zero-em-junho-no-estado-de-sp.ghtml>. Acesso em 28 out. 2021.

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