DIREITO AGORA

Quem tem medo da cadeia de custódia da prova penal?

GABRIEL RODRIGUES DE CARVALHO

Advogado Criminal. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA).

 

A Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como Lei Anticrime, inseriu no Código de Processo Penal os artigos 158-A a 158-F, que tratam da cadeia de custódia da prova, a qual restou definida da seguinte forma:

 

“Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.”

 

Tal conceituação se soma a diversas diretrizes voltadas à documentação da “história cronológica do vestígio”, inclusive prevendo a criação de centrais de custódia nos Institutos de Criminalística (art. 158-E).

Resta, porém, uma indagação que careceu de posicionamento legal: o que ocorrerá em eventual desrespeito a tais inovações legislativas?

Geraldo Prado, antes mesmo da atual previsão legislativa, já defendia que a quebra da cadeia de custódia da prova deve ser tratada com a “inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas, salvo quando houver rompimento do nexo de causalidade entre umas e outras”[1].

Após o advento da Lei Anticrime, Gustavo Henrique Badaró posicionou-se de forma contrária, entendendo que “a questão deve ser resolvida no momento da valoração”[2], não devendo ser inadmissível a priori.

Tais divergências não se limitam ao panorama nacional. Também Emma Calderón Arias classifica como “muy controvertido el debate sobre los efectos derivados de la ruptura de la cadena de custodia”[3].

Veja-se, porém, como BADARÓ embasa seu entendimento:

 

“Não é a cadeia de custódia a prova em si. Mas sim uma “prova sobre a prova”. Sua finalidade é assegurar a autenticidade e integridade da fonte da prova, ou a sua mesmidade. Ela, em si, não se destina a demonstrar a veracidade ou a falsidade de afirmações sobre fatos que integram o thema probandum.[4]

 

Tal controvérsia, portanto, parece estar enraizada em diferentes noções de verdade processual, uma vez que a defesa de PRADO pela inadmissibilidade da prova carente de respeito à sua cadeia de custódia se dá pelo argumento de que “em um processo penal que se legitima a partir da verdade processual, hão de vigorar providências que resguardem de fato o caráter cognitivo da persecução penal, que não se justifica juridicamente quando fundada em impressões pessoais, sentimentos ou valores pré-concebidos, a dispensar a incidência e operação de elementos informativos obtidos de modo lícito.[5]

É possível, pois, afirmar que a problemática passa por uma revisitação ao conceito de verdade no processo penal, tema essa há muito debatido.

Partindo da noção de BADARÓ, a cadeia de custódia não demonstraria, ao menos não diretamente, “a veracidade ou a falsidade de afirmações sobre fatos”, como visto.

Já para PRADO, essa verdade “real” nos é inacessível, sendo necessário garantir o “caráter cognitivo da persecução penal”, a qual constrói uma verdade de fato possível, que seria a processual.

Para BADARÓ o conceito de verdade tem importância a ser observada, pois “se uma justiça penal inteiramente ‘como verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal inteiramente ‘sem verdade’ equivale a um sistema de arbítrio. Justiça e verdade são, portanto, noções complementares ao exercício do poder”[6].

Portanto, aqui vale salientar, também, o alerta de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sobre tal posicionamento de Badaró: “Se a Verdade está no todo, e epistemologicamente não se consegue atingir esse todo, quando dela se fala não é dela que se trata”[7]. Com isso, conclui COUTINHO:

 

“No fundo, a parcialidade que o conhecimento traz ao processo penal permite - isso sim - que se trate daquilo que está enunciado nele, com as limitações que impõe, mormente porque se agregam elementos objetivos e subjetivos que se não eliminam. Desde este ponto de vista, tudo deve ser pensado de modo a que se tenha, no escopo do processo, um menor número de erros; e isso não é simples. Mas há que se tentar, por exemplo, com a refundação e um novo processo ancorado no sistema acusatório. O discurso sobre a Verdade/verdade, aqui, ajuda nada; antes, atrapalha.”[8]

 

Aparentemente, há receio de se assumir postura mais severa contra a quebra da cadeia de custódia da prova penal, por temer não se atingir, com isso, o conhecimento dos fatos, como se a formalidade do processo constituísse não mais do que um obstáculo para se alcançar uma utópica verdade libertadora, mas aparentemente reconfortante.

Entende-se que tal receio deve ser superado. Sendo tal problemática passível de resolução pela valoração judicial e não pela admissibilidade, que seja por outros motivos que não a garantia de uma verdade inalcançável.



[1] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 92.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In: Ricardo Sidi; Anderson Bezerra Lopes. (Org.). Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. 1ed.: , 2017, v. , p. 514-538, p. 535.

[3] ARIAS, Emma Calderón. La polémica de las ilicitudes probatorias derivadas de las fases de la cadena de custodia y el rango de la norma quebrantada. In: Derecho Global. Estudios sobre Derecho y Justicia.Guadalajara, a. 1, n. 3, abr.-jul., 2016, p. 131-159, p. 148.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A cadeia de custódia e sua...op. cit., idem.

[5] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema..., op. cit., p. 87.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 43-80, jan./abr. 2018. p. 46-48, p. 49.

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Conjur. 26 jun. 2020. Disponível em: < conjur.com.br/2020-jun-26/limite-penal-quando-verdade-processo-penal >. Acesso em set. 2021.

[8] Idem.

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