25/03/2021
LUIZ ANTONIO CÂMARA
Doutor e Mestre em Direito Penal e Processual Penal.
Ex-professor da PUCPR e do UNICURITIBA
Advogado Criminal.
Na última terça-feira, 23, seguindo no julgamento da suspeição do juiz da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba para julgar ex-presidente da República, a 2ª Turma do STF, por maioria de votos, a reconheceu.
A maioria vencedora impõe a nulidade de todas as decisões proferidas pelo magistrado no processo e, mesmo, na fase a ele anterior (por exemplo, restrição patrimonial do investigado). E, mais, de todos os atos instrutórios (de produção de prova) dos quais o julgador suspeito participou.
Como não poderia deixar de ser, as diversas torcidas entraram em campo e os “especialistas” repetiram que o fim dos tempos chegou. No ponto de maior relevo bradam que o STF se embasou em prova ilícita.
Confesso não me preocupar o fato de que alguns parentes, entusiastas fanáticos do juiz e que envergam a amarelinha do selecionado brasileiro com o nome dele nas costas, além do número 9 (“nove”), tenham aderido a tais pontos de vista. Ao fim e ao cabo, a postura professoral de sogra e cunhados se restringirá ao âmbito familiar.
Vivemos, como se sabe, um momento em que todos são especialistas em tudo. O que há de epidemiologistas doutores graduados em Direito ou em gastronomia, por exemplo, é digno de nota. Mas, no final, os deuses e o cosmos nos perdoarão a todos, experts plantonistas.
Não me detenho também no esperneio do juiz e dos procuradores do caso. Eles têm o direito de se defender quanto aos erros cometidos.
O que me causa incômodo especial é a posição de jornalistas, analistas, cientistas políticos, “juristas”, entre outros, que, mal informados ou, mesmo de má-fé, infelizmente, sobem na arquibancada e dão ressonância aos equívocos. Os mais destacados no sentido de que a Corte Suprema fundou em prova ilícita a sua decisão e que o processo “recomeçará do zero”. E me causa espécie que as opiniões não sejam emitidas só pela imprensa sensacionalista. Também as redes de TV (públicas, por assinatura ou por gato) e articulistas de publicações ‘sérias’, todos em tese pluralistas, embarcaram no lapso do que entenderam como o “fim da Lava Jato”. E, com vigor, censuram o STF afirmando que os votos vencedores se escoraram em prova ilícita.
Diante disso, talvez presunçosamente e ainda uma vez, escorado na condição de quase “velho professor de Processo Penal”, afirmo:
Dizer que o processo “recomeçará do zero” é incorreto. A prova da fase de investigação preliminar (anterior ao processo) poderá ser utilizada desde que da sua produção não tenha participado o julgador parcial.
A maioria vencedora no STF não fundou sua decisão em prova ilícita (quer a divulgada pelo ‘The Intercept’, quer a apreendida na Operação Spoofing). Os ministros que, corretamente, votaram pela suspeição do juiz, deixaram evidente que desconsideraram tais provas. E isso ainda que dois deles, na leitura dos votos, tenham se referido ao espetáculo indecente e escancaradamente visível da química existente entre juiz (que julgava!) e procuradores da República (que investigavam e acusavam!).
É indiscutível a existência de um competente savoir-faire da equipe multifuncional de acusadores/julgadores, aliás, extremamente articulada. E que se reunia com regularidade para discutir os planos de ação com o magistrado, definindo como acusariam, processariam e, claro, condenariam.
A propósito, a alegação dos envolvidos de que juiz recebe advogado a qualquer hora não é verdadeira. Até porque se fosse, demonstraria intimidade indevida. Reconheço que sempre fui bem recebido por juízes que acataram ou indeferiram meus pleitos. Raramente autoridades judiciais, representantes do MP ou delegados da Polícia Judiciária deixaram de me atender ou o fizeram com má vontade. E todas as audiências/entrevistas de que participei foram de portas abertas, previamente agendadas e nunca nenhuma autoridade me passou o seu número de whatsapp. E nem me ensinou como atuar para obter o resultado almejado.
Mas, como dito, a prova ilícita não constituiu fundamento autônomo para a emissão dos votos. Foram seis as situações indicadas pela defesa demonstrativas da atuação pérfida do magistrado: a) A condução coercitiva imposta ao então investigado em 04 de março de 2016; b) o vazamento, ainda em março de 2016, da gravação (escandalosamente ilícita!) de diálogo entre o ex-presidente e a então presidente da República convencionando a concessão ao primeiro de foro por prerrogativa de função; c) a interceptação telefônica do petista, de familiares seus e de seus advogados; d) atuação do juiz, em férias, impedindo que o réu fosse solto em decorrência de decisão de desembargador federal do TRF-4; e) a retirada do sigilo de acordo de delação de alcaguete, ex-ministro do governo petista, às vésperas da presidencial de 2018 e f) A assunção do cargo de ministro da Justiça pelo juiz no governo de inimigo público do réu.
E não há dúvidas: se não se reconhecesse a suspeição do juiz em tais bases, não seria possível fazê-lo em nenhum outro caso.
E mesmo que o Tribunal tivesse utilizado os diálogos escandalosos entre o juiz e os procuradores da República, ainda assim, não haveria impedimento para que tal ocorresse. Há vários anos se consolidou a postura de que, usada em favor do réu, a prova originariamente ilícita deixa de sê-lo. A propósito, há mais de uma década, o STF autoriza o uso da prova ilicitamente colhida em favor do réu (por ex. no RExt. 583.937- RJ - Rel. Min. Peluso - j. em 19.11.2009). E atente-se: não se trata de jabuticaba. A exclusão da ilicitude da prova pro reo se inspira na jurisprudência dos Estados Unidos da América e, também, na doutrina e jurisprudência alemãs.
A respeito da admissibilidade da prova ilícita em favor do réu SÉRGIO DE MORO HAMILTON, notável Procurador do MP do Rio de Janeiro afirmava há exatos 20 (vinte) anos:
“Em tais casos, no meu entendimento, o sujeito estaria em situação de verdadeiro estado de necessidade, causa excludente da antijuridicidade, vendo-se obrigado ao uso de prova ilícita em defesa da sua liberdade”. (As Provas Ilícitas, a Teoria da Proporcionalidade e a Autofagia do Direito. Revista de Direito Público, Fev/Mar., 2001, p. 54).
Para arrematar, a Lava Jato não acabou e nem é hora de dizer adeus a ela. Os processos dela oriundos, em sua maior parte, serão preservados. Claro, se não surgirem provas de que, em outros casos, o mesmo juiz nem sempre atuou com mãos limpas.