15.03.2021
JOÃO VITOR SANTOS DE ALCÂNTARA
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
No ano de 2019, com a sanção da lei 13.964/2019 (denominado “pacote anticrime”), foi incorporado no processo penal brasileiro mais um instituto de justiça negocial: o “Acordo de Não Persecução Penal” (ANPP), previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal.
Não adentrando às críticas relativas à (in) compatibilidade da justiça negocial na esfera criminal com garantias fundamentais (como o devido processo legal e seus consectários da ampla defesa e do contraditório) [1] e com o próprio modelo acusatório [2], fato é que a ampliação de institutos de tal natureza tem se tornado cada vez mais comum.
Tratando especificamente do “Acordo de Não Persecução Penal”, o legislador possibilitou que, diante da existência de determinados requisitos elencados no art. 28-A do CPP [3], o Ministério Público poderá propor um acordo com o objetivo de evitar a deflagração de processo criminal em desfavor do investigado.
Embora o instituto seja extremamente recente, o Poder Judiciário já tem se manifestado sobre algumas questões basilares.
A primeira questão levada aos Tribunais Superiores consistiu na possibilidade (ou não) do Poder Judiciário – havendo recusa do Ministério Público – impor o oferecimento do ANPP ao investigado.
Nestes casos, o Superior Tribunal de Justiça tem dado máxima amplitude à lógica negocial e consensual do ANPP.
De acordo com a Corte Superior o “acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, consiste em um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado” [4], não constituindo direito subjetivo do investigado e não havendo obrigatoriedade de oferecimento do Acordo caso não haja interesse do órgão acusatório.
Cite-se trecho do Ag. Rg. em RHC nº 130587:
“O acordo de persecução penal não constitui direito subjetivo do investigado [...]
O Ministério Público poderá e não deverá propor ou não o referido acordo, na medida em que é o titular absoluto da ação penal pública”. [5] (grifei)
A segunda questão ventilada nas Cortes Superiores foi referente à retroatividade (ou não) do instituto aos processos deflagrados antes da entrada em vigor da nova legislação.
Sobre a questão, as Turmas do Supremo Tribunal Federal [6] adotaram entendimento de que o “acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”, sob os seguintes fundamentos:
“A leitura do art. 28-A do CPP evidencia que a composição se esgota na fase anterior ao recebimento da denúncia. Não apenas porque o dispositivo refere investigado (e não réu) ou porque aciona o juiz das garantias (que não atua na instrução processual), mas sobretudo porque a consequência do descumprimento ou da não homologação é especificamente inaugurar a fase de oferta e de recebimento da denúncia (art. 28-A, §§ 8º e 105)
[...]
Dessa forma, o ANPP não se conforma com a instauração da ação penal, devendo ser estabelecido o ato de recebimento da denúncia como marco limitador da sua viabilidade. Com efeito, a finalidade do acordo é evitar que se inicie processo, razão pela qual, por consequência lógica, não se justifica discutir a composição depois de recebida a denúncia.” [7] (grifei)
Apesar do posicionamento perfilhado pelos órgãos fracionários do STF, na jurisprudência foi possível identificar entendimentos com ele concordantes e dissonantes.
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça adotou entendimento idêntico ao exarado pela Suprema Corte [8]. Contudo, a Sexta Turma daquela Corte Superior não estabeleceu o “recebimento da denúncia” como marco temporal para a aplicação do ANPP, bastando, apenas, que o processo não tenha transitado em julgado para que seja possível a incidência do Acordo [9].
Já, no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por exemplo, há Câmaras Criminais que fixaram o “oferecimento da denúncia” como marco temporal [10] e outras que aderiram ao entendimento do STF, estabelecendo o “recebimento da denúncia” como limite temporal para aplicação do ANPP [11].
É evidente, então, a dissonância jurisprudencial em relação à (ir) retroatividade do art. 28-A do CPP, havendo pendência de pronunciamento definitivo sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal (atualmente afetado ao Plenário no HC nº 185.913 de Relatoria do Min. Gilmar Mendes).
No entanto, o marco temporal (“recebimento da denúncia”) assentado pelos órgãos fracionários e em decisões monocráticas do STF tem sido utilizado para orientar a atuação do Ministério Público de diversas regiões.
Em alguns estados da federação o entendimento de que “o oferecimento de proposta de Acordo de Não Persecução é possível apenas até o ‘recebimento da denúncia’” tem sido estendido – analogicamente - às investigações iniciadas após a entrada em vigor da lei 13.964/19 (não se restringindo, apenas, àqueles processos deflagrados antes da vigência da nova legislação).
Com isso, em razão da ausência de clareza da legislação federal, o Poder Judiciário deverá resolver - com urgência – questões essenciais para a utilização correta e igualitária do ANPP em todos os estados da federação, tais como:
a) até qual momento (pré?) processual é permitida a realização de Acordo de Não Persecução Penal?”
b) o investigado deverá ser informado, antes do oferecimento da denúncia, de eventual recusa do MP em oferecer o ANPP?
c) Em caso de interposição de Revisão, com fulcro no art. 28-A, §14º do CPP, o Juiz deverá postergar eventual recebimento da denúncia ou suspender o curso do processo em andamento até decisão definitiva da Instância Superior do MP?
Assevere-se, que preocupa eventual fixação do “oferecimento da denúncia” ou “recebimento da denúncia” como marco temporal para realização do Acordo sem o estabelecimento de procedimentos que assegurem a efetividade do §14º, art. 28-A do CPP [12].
Afinal, não é incomum encontrar, na prática, membros do Ministério Público apresentando a negativa de oferecimento de Acordo em conjunto com a denúncia.
Nestes casos, questiona-se: como o acusado será cientificado da recusa do oferecimento do ANPP, se não, através da citação?
É evidente que ocorrendo a citação do acusado na ação penal, já ocorreu - por óbvio -, o oferecimento e o recebimento da denúncia. Assim, se nessa fase processual (pós-oferecimento/recebimento da denúncia) não for mais possível a realização de Acordo de Não Persecução Penal haverá infringência (e esvaziamento!) da garantia de ampla defesa (art. 5º, LV da CF) especialmente do direito de Revisão (§14º, art. 28-A do CPP), corolário do princípio constitucional citado.
REFERÊNCIAS
[1] Vide: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razon: Teoría del garantismo penal. Tradução: IBÁNEZ, Andrés et. al. Madri: Trotta, 1995, p. 599-602.
[2] Vide: LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2020, p. 856-857.
[3] Crime praticado sem violência ou grave ameaça; confissão formal e circunstancial do crime; pena mínima cominada igual ou inferior a 4 (quatro) anos etc.
[4] STJ. HC 612.449. 5ª T. Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. j. em 22.09.2020. DJe de 28.09.2020.
[5] STJ. Ag. Rg. em RHC nº 130587. 5ª T. Rel. Min. Félix Fischer. j. em 17.11.2020.
[6] Destaque-se que o assunto se encontra afetado para deliberação do Plenário do STF no bojo do HC nº 185.913 de Relatoria do Min. Gilmar Mendes.
[7] STF. Ag. Rg. em HC 191.464. 1ª T. Rel. Min. Roberto Barroso. j. em 11.11.2020. DJe de 18.09.2020.
[8] STJ. PET no Ag. em REsp. nº 1668089. 5ª T. Rel. Min. Félix Fischer. j. em 25.06.2020. DJe de 29.06.2020. | STJ. REsp nº 1883143. 5ª T. Rel. Min. Joel Ilan Paciornik. j. em 28.08.2020. DJe de 01.09.2020.
[9] STJ. AgRg no HC 575.395. 6ª T. Rel. Min. Nefi Cordeiro. j. em 08.09.2020. DJe de14.09.2020.
[10] TJPR - 4ª C.Criminal - 0021929-15.2012.8.16.0013 Rel. Des. Celso Jair Mainardi - J. 15.12.2020. DJe de 09.09.2020.
[11] TJPR - 5ª C.Criminal - 0055505-57.2020.8.16.0000 - Rel.: Juiz Ruy Alves Henriques Filho - J. 23.11.2020. DJe de 24.11.2020.
[12] § 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.